Ontem tivémos a oportunidade de, uma vez mais, de assistir a uma excelente sessão de exposição, troca de ideias e de debate; desta feita em torno da Lisboa da Raquel Freire e da Fernanda Câncio.
Assistimos a duas intervenções bem intimistas, bem pessoais, que nos transportaram para a Lisboa artista, activista, militante. Ambas as oradoras fizeram-nos percorrer as ruas do Bairro Alto dos anos 80 à actualidade.
A Lisboa de… Raquel Freire e Fernanda Câncio,
Como sabem, no seguimento do sucesso do I Curso de História do El Corte Inglês, decidimos continuar a aventura por temas da nossa História Contemporânea. A nossa nova proposta sugere uma reflexão em torno de duas datas-evento e a cidade de Lisboa, local dos acontecimentos citados. Cinco sessões, intercruzadas com estórias de personagens com vida na cidade, balizadas pelo regicídio de Fevereiro de 1908 e pela eleição presidencial de Junho de 1958.
Nesta nossa iniciativa já seguimos as tramas do regicídio, onde percorremos com atenção as ruas do Terreiro do Paço e os ambientes da época. Nessa sessão fomos generosamente colocados sob os olhares da intimidade da família real, da oposição republicana e da situação monárquica. A sessão, que contou com a presença de Rui Ramos, António Ventura e Eduardo Nobre, transportou-nos para os inícios de novecentos onde, qual Gattopardo, nos foi permitido assistir à mudança que permitiu que tudo permanecesse igual
Depois, faz agora um mês, convidei-vos a conhecer a Lisboa do Rui Tavares. O Rui, no seu estilo intelectualmente apurado, colocou-nos sob a pele de muitos lisboetas deste e doutros séculos. Entre outros, recordam-se certamente do António José de Almeida, o nosso judeu português abrazileirado (ou brasileiro aportuguesado) que nos acompanhou pelas ruas da Lisboa pré-terramoto, através das suas peças e dos seus quotidianos. O Rui escolheu esta personagem, morto pela inquisição, como elo entre a Lisboa e Ontem e a Lisboa de Hoje, afinal duas cidades unidas pela Cultura.
É a cidade de Lisboa que vive estes acontecimentos. De forma intensa e emotiva. São muitos os olhos que registam este factos. Os protagonismos hierarquizam-se. Transeuntes desprevenidos oferecem a moldura humana que pinta as ruas da História. Estrangeiros, estrangeirados, alfacinhas, lisboetas. Todos pululam nas ruas da cidade, vivendo e inscrevendo pedaços de memória nos cantos e recantos da capital. O Rei, Delgado, ou o assumido anónimo são apenas personagens de grau diferenciado na teatralidade de Lisboa; Cidade de intensa atracção.
Muitos chegam sem nada. Muitos partem com o nada com que chegaram. Outros aqui ficam; aqui vivem; aqui fazem a sua história. Passam de incógnitos a conhecidos; de conhecidos a actores de destaque. E o que eram apenas estórias de quotidianos discretos são agora eventos noticiados. Que registo tem o impacto individual da Cidade nas vidas de quem atravessa este processo? Que reflexão é construída? Como se inscreve a cidade nas suas estórias?
É neste registo que se encontram as nossas convidadas. Duas estrangeiras, estrangeiradas, adoptadas. Duas mulheres de acção e reflexão. Duas lisboetas intensas, de lastro e de inscrição. A Raquel Freire e a Fernanda Câncio.
CV RAQUEL FREIRE CV FERNANDA CÂNCIO Conheci a Raquel em plena campanha para o Referendo da Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, nos finais de 2006, e rapidamente desenvolvemos uma empatia natural, que perdura e se cimenta. Partilhamos a vontade de transformar mentalidades e acreditamos que a política activa – não necessariamente partidária – pode apresentar resultados.
Depois mantivemos contacto, com regularidade. Fomos acompanhando os projectos entretanto desenvolvidos, trocando ideias sobre alguns futuros, e planeando o dia onde em Portugal a igualdade perante a Lei seja uma realidade para todos, independente da nossa raça, género, religião, ou orientação sexual.
Porque é que o acesso ao acto consagrador do amor só deve ser permitido a quem se assume heterossexual? É o Mundo, hoje, assim tão monoculor? Já não aceitámos a liberdade individual como peça estruturante das sociedades modernas? Para quando a consagração da Igualdade Legal Plena?
Há, de facto, muito que fazer.
Eu e a Raquel compartilhamos o vício da pró-actividade, da positividade da acção e da intervenção social. Julgamos que a mudança é possível e que depende apenas de nós.
A Fernanda Câncio conhecia-a através da Raquel. Já a conhecia publicamente, através do seu trabalho de jornalista e, mais tarde, através da sua participação na campanha de 2007. É, pois, daquelas pessoas que antes de a conhecer já a conhecia, primeiro a sua persona pública, depois na amiga da amiga.
A Fernanda impressiona pela simplicidade directa da sua escrita, pelo activismo permanente, e pela constante atenção ao pormenor e ao caso específico (tantas vezes desprezado nas estatísticas). Não se esquiva da polémica nem gere tacticamente uma promissora carreira de «opinion maker» ou de intelectual público. É, acima de tudo Jornalista de Reportagem, e por isso reporta o que lhe parece incorrecto, o que a confunde socialmente, e o que lhe merece a reflexão.
Percebem desta apresentação que, quando enderecei o meu convite a estas duas senhoras, procurava para esta sessão apresentar-vos a Lisboa Activista, a Lisboa Militante. No entanto, pobre ficaria a nossa sessão se não explorássemos outras facetas das nossas convidadas.
Da Fernanda Câncio descobri, recentemente, a activista lisboeta. Descobri com grande agrado um testemunho velhinho de uma noite na Cachupa, na casa do senhor Victor, onde no meio de cervejas e de cigarros a pergunta geralmente era: «com ou sem?» (ovo entenda-se). Eu geralmente servia-me da dose completa (cachupa com ovo + 1 frango).
Anos mais tarde a Fernanda escrevia que Não se consegue explicar uma cidade. E que Só tens uma cidade – e és tu que escolhes, nada disso do lugar em que nasci, nada disso das raízes, não é uma mãe ou um pai, é um amor, uma união de facto, um casamento.
Adiante, no mesmo texto, acrescentava:
Podem dizer-te, podes dizer-me que a cidade são praças e ruas e avenidas, luzes e equipamentos – escolas, hospitais, teatros, cinemas, livrarias, bibliotecas, empregos, restaurantes, bares, jardins, parques, esplanadas. Há centros comerciais que têm quase isso tudo. São cidades?
Esta atitude mais reflexiva assume-se mais interventiva em textos mais recentes, nomeadamente quando tece duras críticas à proposta de Maria José Nogueira Pinto para a Baixa-Chiado (aqui insurgindo-se com a falta de conteúdo humano numa proposta demasiado técnica e política); e quando peremptoriamente afirma, num texto recente intitulado «Nova Lisboa», que as notícias da morte desta cidade podem ter sido muito exageradas.
A Raquel, aparte da activista e da militante social é também realizadora e cineasta, escritora e performer, com intervenção directa nessas áreas. Desta forma queria ainda conhecer a sua Lisboa criativa, a Lisboa dos seus Artistas, a Lisboa das suas vanguardas culturais. Sei que ela grava em lentes diferentes a luz humana desta cidade, como que fosse munida de meios privilegiados que retiram das ruas da nossa Lisboa uma luminosidade diferente.
Vêem assim que os meus propósitos, nesta sessão, passam pela vontade de explorar a Lisboa Criativa, a Lisboa Jornalista, a Lisboa Underground e a Lisboa activista. Ela Existe? Por onde se anda nestas Lisboas?
Por fim, ter a oportunidade de poder conversar com duas jovens mulheres, activa,s obriga a deixar a provocação: «há uma Lisboa no Feminino?»
Vamos ouvi-las: