quarta-feira, 10 de outubro de 2007

PORTUGAL EM 1900 – PANORAMA CULTURAL. Ricardo Revez




PORTUGAL EM 1900 – PANORAMA CULTURAL

Por Ricardo Revez

Haveria muito a dizer sobre a cultura em Portugal na viragem do século XIX para o século XX. Foi um tempo em que se cruzaram muitas e variadas ideias: políticas, filosóficas, literárias e artísticas. Algumas completamente novas; outras que continuavam em voga desde há décadas; outras antigas, mas que surgiram de forma renovada. É uma temática complexa e ainda pouco estudada, porém, tendo em conta o tempo de que dispomos e os objectivos que presidem a este ciclo de conferências, resolvemos limitar a nossa abordagem às principais correntes filosóficas e literárias que vigoravam no Portugal de então.

De uma forma simplificada, breve e espero que compreensível, podemos esquematizar o complexo quadro cultural finissecular português da seguinte forma:

A nível filosófico temos a corrente racionalista, de que era principal representante o pensamento positivisto-cientista, e a corrente irracionalista, que, apesar de ter influência em alguns pensadores nacionais finisseculares, teve a sua expressão maior a nível literário.


Foi a partir destas correntes filosóficas, por sua vez, que se desenharam as correntes literárias suas contemporâneas:

1. a partir do racionalismo positivista surgiu o realismo e, sobretudo, o naturalismo (embora aqui nos interesse focar com mais ênfase o naturalismo, tendo em conta que o primeiro já tinha praticamente desaparecido por esta altura);


2. a partir dos irracionalismos surgiram o simbolismo e o neogarretismo, que é uma primeira expressão do neo-romantismo que iria dominar em Portugal nas primeiras três décadas do século XX.


3. quanto ao decadentismo, é algo de mais complexo, pois não se trata apenas de uma corrente literária, mas também de uma atitude mental generalizada no final do século XIX. Como diz J. C. Seabra Pereira, “importa não confundir estilo epocal decadentista e manifestação da síndrome de decadência nacional que obcecava a intelectualidade no fim-de-século”. Deste modo, o decadentismo:


-em termos literários, acaba por derivar tanto do irracionalismo, como, em determinados casos, de uma espécie de degenerescência do naturalismo;


-em termos de atitude mental, o irracionalismo pode, ou não, estar presente: por exemplo, a ideia de decadência de um republicano positivista é diferente da de um escritor decadentista ou neogarretista.
No entanto, resolvemos focar o decadentismo apenas como corrente literária, e não como atitude mental, tendo em conta a vastidão do tema.


À época, a ideia de decadência marcava a cultura portuguesa e europeia: decadência física e mental da raça humana (corroborada pela medicina); decadência dos valores, das certezas que transmitiam segurança ao Homem; decadência de costumes (muito explorada pelo naturalismo); e decadência política, que é muito marcada em Portugal devido ao Ultimatum e à descredibilização da Monarquia e do sistema político.


Perante esta quase estrutural ideia de decadência, as diferentes correntes filosóficas e literárias que referi irão ter, por sua vez, diferentes atitudes:

1. As que derivavam do racionalismo, ou seja, o positivismo, o realismo e o naturalismo, eram marcadas pelo optimismo e pela possibilidade de regeneração;


2. As que derivavam do irracionalismo dividiam-se entre uma atitude também optimista, como o neogarretismo e as outras correntes neo-românticas, e uma atitude pessimista, como o simbolismo e o decadentismo, que, não vislumbrando qualquer solução possível, pelo menos material, prolongam esse sentimento de decadência e ou procuram evadir-se da realidade, ou aceitam essa condição, chegando mesmo a ostentá-la;

Este dualismo é bem expresso em duas obras da época, publicadas quase ao mesmo tempo nos dois anos anteriores a 1900:

· Em A Consciência e o Livre Arbítrio, obra publicada em 1898, o positivista Miguel Bombarda (1851-1910) afirmava uma visão do mundo puramente materialista e mecanicista, onde, através da ciência, tudo podia ser compreendido e manipulado de forma a servir o bem comum.

· Em O Fim de um Mundo, obra publicada em 1899 (embora por vezes também surja a indicação de que foi publicada em 1900), o decadentista Gomes Leal (1848-1921) afirmava: “O século vai findar na orgia e na demência”, demonstrando uma atitude conformada e desiludida perante um mundo que havia caído num abismo do qual parecia não haver retorno.

As correntes filosóficas

Em 1º lugar, temos o racionalismo, mais propriamente na sua expressão positivisto-cientista.
As ideias defendidas pela doutrina positivista opunham-se às do romantismo, a corrente cultural que de certo modo veio substituir em meados do século XIX. Entre elas podemos referir:

· A valorização da objectividade em detrimento da subjectividade, ou seja, o objecto determina o sujeito
· A valorização do conhecimento útil e prático em detrimento da teoria, da abstracção
· A atitude materialista
· A pouca importância dada ao indivíduo: o que conta é a sociedade enquanto organismo formado por famílias e grupos onde o indivíduo se insere


· O aparecimento da ciência como uma espécie de nova religião em que a razão é sacralizada. Assim deixa de haver mistério no mundo, tudo tem uma explicação porque tudo no mundo funciona através de mecanismos semelhantes aos das máquinas e por meio do método científico é possível descobrir esses mecanismos e perceber as leis que os regem


· Um determinismo histórico optimista, ou seja, a ideia de que a Humanidade caminha sempre e inevitavelmente no sentido do progresso, passando por diversos estados[1] e desembocando num fim já determinado: o estado científico, caracterizado, entre outras coisas, por uma sociedade tecnocrática onde o governo seria da responsabilidade dos cientistas

Estas ideias foram inicialmente desenvolvidas pelo francês Auguste Comte (1798-1857), embora tenham sido depois aperfeiçoadas ou modificadas pelos seus seguidores. O grande impulsionador deste pensamento foi o grande desenvolvimento material, tanto técnico como científico, que se verificou durante o século XIX. A todo o momento se faziam novas descobertas e surgiam novas invenções. Apesar das grandes desigualdades sociais, foi graças a estas descobertas e invenções que se conheceu, naquele período, um conforto, uma segurança e uma inovação sem precedentes até então, o que parecia corroborar a teoria positivista.

O positivismo terá chegado a Portugal por volta dos anos 60 do século XIX através do ensino da Matemática nas Escolas Politécnicas de Lisboa e Porto e na Universidade de Coimbra. A primeira geração portuguesa que tem contacto com essas novas ideias é constituída por personalidades como José Falcão (1841-1893), Manuel Emídio Garcia (1838-1904), Teófilo Braga (1843-1924), Teixeira Bastos (1857-1902), Bernardino Machado (1851-1944), Manuel de Arriaga (1840-1917), Miguel Bombarda e Júlio de Matos (1857-1923), que acabarão por interessar-se sobretudo pela componente sociológica do positivismo.

Como podemos verificar, todas estas figuras eram republicanas. Segundo Fernando Catroga, este facto está relacionado com a urgência de adequar o ideário positivista “às necessidades ideológicas das aspirações políticas que, nesse mesmo momento, buscavam uma legitimação teórica escudada no prestígio que o saber científico-experimental tinha alcançado”.

Quando chegamos a 1900, quase toda a elite científica e filosófica portuguesa tinha aderido ao positivismo[2] e, consequentemente ao republicanismo. Pelo menos em Portugal, são duas realidades quase ou totalmente inseparáveis. Isto está relacionado com o binómio de que falámos: optimismo/regeneração vs pessimismo/decadência: perante um país em crise, com um regime político que se pretendia eliminar, era necessário apresentar uma alternativa optimista, regeneradora. Assim, o positivismo, com a sua proposta de regeneração, de progresso, servia perfeitamente as intenções dos republicanos, adequando-se à mensagem que era necessário fazer passar: esta consistia em afirmar que aquele período de maior decadência não passava de uma fase menos boa na caminhada em direcção ao progresso do país - era apenas uma questão de retirar os seus entraves e acelerar o processo, o que só seria possível com a implantação de uma República, a qual procederia à eliminação da Monarquia e da influência perniciosa da Igreja, sobretudo do jesuitismo, e regeneraria a raça e a sociedade através das ferramentas que a ciência lhe proporcionava, como a educação (física, moral, cívica), a higiene e a saúde, física e sobretudo mental (por meio da psiquiatria). O regime republicano seria assim o instrumento da ciência e a aplicação prática das teorias positivistas e afins.

Apesar desta aposta numa mensagem de regeneração, os republicanos aproveitaram-se sempre da ideia de decadência geral que se fazia sentir no país a seu favor e procuraram amplificá-la (obras de Silva Cordeiro, Teixeira Bastos, Augusto Fuschini) de modo a demonstrarem a urgente necessidade de mudança.


Em 2º lugar, temos o irracionalismo.

No Portugal da viragem do século, a presença da corrente irracionalista em Portugal limita-se às ideias de Arthur Schopenhauer (1788-1860)[3] e de Eduard Von Hartmann (1842-1906). Tendo em conta a situação periférica de Portugal, onde as correntes culturais europeias chegaram sempre tardiamente e onde foram quase sempre mal assimiladas, não é anormal que tal sucedesse: de facto, em 1900, grande parte das filosofias irracionalistas eram uma novidade com poucos anos.[4]

Mesmo Friedrich Nietzsche (1844-1900), apesar de já no início da década de 90 ter começado a ser referido por alguns autores portugueses, só nos primeiros anos do século XX começa a ganhar real influência. O positivismo tinha uma hegemonia esmagadora entre os pensadores portugueses, o que dificultava a adopção de novas ideias, ainda para mais as que contradiziam essa corrente: isto também ajudará a explicar o facto de praticamente só encontrarmos indícios fortes de irracionalismo na poesia ou na ficção, e não na filosofia.[5]

Assim, teremos que esperar até aos anos 10 do século XX para assistir ao início de uma aplicação significativa destas novas correntes no pensamento filosófico e na literatura portuguesa. Bons exemplos são Teixeira de Pascoaes (1877-1952), Leonardo Coimbra (1883-1935), os modernistas, os integralistas lusitanos, etc.


As correntes literárias

1-Naturalismo

Em 1900, o naturalismo era a corrente literária dominante em Portugal. Derivava do realismo, o qual, por essa altura, havia praticamente desaparecido. Porém, para compreenderemos o naturalismo, teremos que falar brevemente sobre o realismo.

O realismo foi uma corrente literária com fortes bases de índole racionalista e materialista e influenciada pelas ideias socialistas que foram surgindo em Portugal a partir da segunda metade do século XIX.


-Surge como reacção ao ultra-romantismo que dominava o panorama literário português da época: é por isso anti-romântico


-Procura observar, descrever, analisar e criticar a sociedade e os costumes do seu tempo tal como eles são, ou seja, de forma objectiva e evitando qualquer tipo de subjectividade ou lirismos: é assim anti-idealista


-Ao contrário do seu antecessor, o romantismo, foca sobretudo temas de actualidade, nomeadamente de índole familiar, social, económica, mental, política e cultural, o que demonstra preocupações sociais num país cada vez mais urbanizado, industrializado, e com uma sociedade mais proletarizada, e por isso, com mais desequilíbrios


-Tem uma atitude denunciadora e reformista: os seus diagnósticos negativos procuram chamar a atenção para mudanças que são necessárias levar a cabo

Apesar de já existirem autores que, anteriormente, de forma pontual, já haviam realizado abordagens realistas nas suas obras (ex: Júlio Dinis (1839-1871)), pode considerar-se que é Eça de Queirós (1845-1900), sob a influência de autores como Honoré de Balzac (1799-1850), Gustave Flaubert (1821-1880) ou Pierre Proudhon (1809-1865), quem introduz o realismo em Portugal, anunciando essa intenção, desde logo, na comunicação que proferiu aquando das célebres Conferências do Casino (1871) e que se intitulava “O Realismo como Nova Expressão da Arte”. As próprias Farpas, da autoria de Ramalho Ortigão (1836-1915), inicialmente em colaboração com Eça, acabam por ser um projecto realista devido à forma como observam a realidade do país e pela forma pedagógica como procuram apontar soluções para os problemas que nela detectam.

Em relação ao naturalismo, este é uma espécie de realismo levado ao extremo, em que a matriz positivista, materialista e cientista é ainda mais forte, transformando-o numa espécie de realismo científico. Esta forma de abordagem origina menos preocupações estéticas do que o realismo, ou seja, elimina os últimos resquícios de romantismo que por vezes existiam no realismo.


O autor naturalista aplica o método científico na forma como analisa a sociedade e os indivíduos que a compõem, dissecando-os como quem disseca um cadáver ou como quem observa um doente.


O naturalismo tem fortes bases nas teorias deterministas de Hippolyte Taine (1828-1893), ou seja, na ideia de que a personalidade de um indivíduo era fatalmente determinada pelo meio, pela raça e pelo momento histórico em que este vivia, e devia, assim, ser entendida através da análise destes factores.


Segundo Carlos Reis, ao contrário do realismo, o naturalismo desvia-se da análise do típico e envereda pela análise do que é anormal ou patológico (e quanto mais chocante melhor): daí as temáticas naturalistas andarem quase sempre à volta do alcoolismo, do roubo, da doença mental, da homossexualidade, da miséria, do adultério, da corrupção, da prostituição, da imoralidade, etc.


O naturalismo mantinha a mesma preocupação reformista/regeneradora do realismo, talvez até acrescida de uma componente ainda mais moralista. Porém, a nosso ver, a partir de determinada altura, os autores naturalistas portugueses enveredaram por um caminho de exploração gratuita do anormal, daí ser nosso costume dizer que o naturalismo trazia em si mesmo a semente do decadentismo, visto que ao querer analisar a sociedade como um médico analisa um paciente, não tardou a encontrar na sociedade todo o tipo de patologias e a fascinar-se por elas. O escritor naturalista não resistiu, na sua tendência excessiva para a descrição do que vê, em cultivar as narrativas mórbidas, nas quais descrevia todo o tipo de doenças sociais e individuais, sobretudo de cariz psicológico ou moral. Daí que grande parte dos escritores inicialmente naturalistas se aproxime do decadentismo. É o que acontece com Fialho de Almeida (1857-1911) em alguns dos seus contos, com Abel Botelho (1856-1917) na série Patologia Social, que engloba 5 volumes, entre os quais os famosos O Barão de Lavos (1891) e O Livro de Alda (1898), e com Alfredo Gallis (1859-1910) na série Tuberculose Social, em 12 volumes – este último caso é claramente um caso que podemos reduzir ao esquema: exagero – choque – vender muitos livros.


Outros naturalistas importantes na época foram Teixeira de Queirós (1849-1919), Júlio Lourenço Pinto (1842-1907) e João Grave (1872-1934), o primeiro dos quais publicou duas séries de livros intituladas Comédia do Campo e Comédia Burguesa, totalizando 16 volumes.


Este tipo de organização das obras em longas séries, cada uma delas abordando um determinado assunto relacionado com um espaço físico, social ou profissional que dava nome às próprias séries, demonstra o espírito metódico, quase laboratorial, que presidia a este tipo de empreendimentos literários supostamente de base científica.

Para além do já referido Taine, as influências dos naturalistas portugueses foram o escritor Émile Zola (1840-1902), o filósofo Ernest Renan (1823-1892, abordagem racionalista do cristianismo) e o cientista Claude Bernard (1813-1878, criador da medicina experimental)


2-Decadentismo, simbolismo e neogarretismo


Decadentismo e simbolismo:

As raízes de ambas as correntes são comuns. Assentam numa reacção contra as principais características do mundo finissecular: contra a hegemonia racionalista, sobretudo contra a sua expressão positivisto-cientista; contra a industrialização desenfreada; contra o crescimento das ideias socialistas; contra o domínio dos valores burgueses; contra o realismo e o naturalismo.


O homem de fim-de-século começou a aperceber-se que a prometida evolução da Humanidade não era um dado adquirido, e que a visão optimista que a ciência e o racionalismo ofereciam do mundo não parecia corresponder à realidade. De facto, parecia não haver razão para optimismos. A Revolução Industrial tinha trazido prosperidade económica e desenvolvimento tecnológico, mas, também, uma atitude demasiado materialista face à vida, onde por entre o fumo e as fábricas que enchiam as cidades, não havia espaço para a espiritualidade. O excessivo conformismo do ideal burguês assustava os jovens artistas, que queriam algo mais da vida do que acumular fortuna e ter uma família. Por outro lado, as massas operárias ganhavam cada vez mais força e ameaçavam o direito à individualidade e à diferença. O progresso prometido pelo positivismo surgia, desta forma, como uma ilusão, visto que apenas se tinha confirmado no campo material, e era esse mesmo materialismo que parecia ser a semente da destruição da civilização, quer fosse através da voracidade da Máquina, quer fosse por meio da prometida revolução socialista. Assim, o homem de fim-de-século vai encontrar na literatura (e também na arte e na filosofia), escapes face à realidade, uma forma de acentuar a sua individualidade e uma alternativa ao paradigma positivista, cientista e burguês. É desse modo que surgem o decadentismo e o simbolismo.

O decadentismo (em termos literários) e o simbolismo nem sempre são fáceis de distinguir, surgindo por vezes em associação.

Partilham algumas atitudes – cosmopolitismo; elitismo; exaltação da individualidade, daquilo que é subjectivo; tendência para o misticismo; valorização da originalidade, da imaginação; cultivo do artificial, do raro, do único, do exótico; – porém, diferem na importância dada às temáticas: para o simbolismo é mais importante o aspecto formal da obra do que propriamente o seu conteúdo; valoriza a musicalidade e a beleza das palavras, das frases, as sensações que estas produzem, mais do que as ideias que estas possam eventualmente transmitir – para tal usa e abusa daquilo a que J. C. Seabra Pereira chama “rebuscamento sintáctico e lexical”, ou seja, a excessiva utilização de palavras pouco conhecidas, de neologismos e de estrangeirismos, bem como de originais métodos de construção de frases.

Quanto ao decadentismo é marcado por determinadas temáticas, que podem, ou não, surgir no simbolismo: pessimismo, ocultismo, satanismo, gosto e exaltação do mórbido, do patológico (sobretudo a loucura e a neurose), daquilo que era considerado fora do normal, bem como uma marcada procura da transgressão (a homossexualidade, a ostentação dos vícios).

O misticismo também é mais acentuado no simbolismo, o que está relacionado com a teoria em que este assenta: para os simbolistas a verdadeira realidade encontrava-se não naquilo que os sentidos conseguiam apreender (isso era apenas aparência), mas nos símbolos, denotando uma clara semelhança com as teorias do inconsciente e tornando os simbolistas em percursores do surrealismo.

Em Portugal, o simbolismo manifestou-se praticamente só na poesia, ao contrário do decadentismo, que teve expressão na poesia e na prosa: tanto na prosa decadentista pura, digamos assim, como naquele tipo de naturalismo que degenerou em decadentismo, e de que já falámos.

O movimento simbolisto-decadentista português tem, talvez, como grande impulsionador, Xavier de Carvalho (1862-1919), correspondente em Paris do jornal A Província a partir de 1886. Neste jornal, dá notícias do movimento simbolista francês ao público português.


1889 é o grande ano do simbolismo português: surgem revistas como o Intermezzo, do Porto, e as duas mais importantes, Boémia Nova e Os Insubmissos, ambas de Coimbra (é interessante ver como Lisboa nunca teve uma revista simbolista de grande importância). Na primeira, escreviam nomes como Alberto de Oliveira (1873-1940) e António Nobre (1867-1900) e na segunda, Eugénio de Castro (1869-1944). Estes dois grupos tiveram uma forte rivalidade durante o curto período que duraram, levando mesmo a cenas de pancadaria.


Nos anos seguintes, o prefácio de Oaristos, de Eugénio de Castro, constitui-se como o manifesto do simbolismo português. Surge o grupo portuense dos Nefelibatas, de que faziam parte Raul Brandão (1867-1930), Júlio Brandão (1869-1947), Justino de Montalvão (1872-1949) e D. João de Castro (1871-1955).

No entanto, no Portugal de 1900, o simbolismo e, em termos literários, o decadentismo, estavam a evoluir para algo de diferente – para uma estética neo-romântica, que teve como primeira vertente o neogarretismo (embora tanto um como o outro tenham sobrevivido na obra de muitos dos modernistas, nomeadamente em certas facetas de Fernando Pessoa (1888-1935), em Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) e em Luís de Montalvor (1891-1947).

Porquê esta mudança?

O simbolismo e o decadentismo (em termos literários, e não em termos de atitude mental) em Portugal, ao contrário do que aconteceu em França, não passaram em grande parte de uma atitude de pose (Fialho de Almeida chamou a atenção para isso em Os Gatos): enquanto os verdadeiros decadentes como Paul Verlaine (1844-1896) ou Arthur Rimbaud (1854-1891) eram vagabundos, pobres, boémios, viciosos, doentes físicamente, e por vezes mentalmente, genuínamente antiburgueses e anti-sistema, os decadentistas portugueses eram filhos de boas famílias, saudáveis, burgueses e pouco criativos, limitando-se, em grande parte dos casos, a imitar as fórmulas dos seus ídolos franceses como forma de dar largas a uma leve irreverência própria da idade. De facto, grande parte destes autores tinha formação universitária e acabou por enveredar por carreiras na diplomacia, na política, na medicina, etc, tendo tido uma longa e perfeitamente normal vida burguesa, o que acabou por os afastar de vez das suas atitudes mais inconformistas, genuínas ou não.


Como em tudo, houve excepções: António Nobre, José Duro (1875-1899), Camilo Pessanha (1867-1926), Ângelo de Lima (1872-1921) e Gomes Leal, são exemplos de verdadeiros decadentes em Portugal: o sentimento de angústia que procuram transmitir é tremendamente real (os dois primeiros morreram muito novos, vítimas de tuberculose; Pessanha, apesar de diplomata, levou, nos últimos anos, uma vida de marginal, isolado em Macau e viciado em ópio; o desconcertante Lima viveu grande parte da sua vida internado no Hospital de Rilhafoles, actualmente Hospital Miguel Bombarda; Gomes Leal, viveu os últimos vinte anos da sua vida mergulhado no álcool e na miséria).

A formação que esses autores, uns mais genuínos que outros como já vimos, tiveram na cultura decadentista não iria desaparecer, mas transformar-se. À medida que se foram aburguesando, tornaram-se mais nacionalistas, conservadores, tradicionalistas. Esta geração, chamada de 90, inicialmente cosmopolita, ávida da novidade que vinha do estrangeiro, parece assim adoecer com o excesso de civilização e encontra no seu país a solução: a ruralidade, a calma, a tradição são os remédios. Para Augusto da Costa Dias, citado por Óscar Lopes, o neogarretismo é a “reacção da jovem pequena burguesia provinciana recém-formada por Coimbra e pelo decadentismo francês contra o iminente avassalamento do seu mundo social” originado pelo crescente poder “do capitalismo fabril e financeiro.”


Foi o que aconteceu com António Nobre, com Alberto de Oliveira e até com Trindade Coelho (1861-1908). Inspirado pelos poemas e cartas escritos por Nobre a partir do estrangeiro, em que este reflectia sobre Portugal e sobre a sua experiência pessoal no estrangeiro, Oliveira, em 1894, reúne e publica uma série de artigos numa obra intitulada Palavras Loucas. Nela, traça as principais ideias que presidiriam ao neogarretismo: o regresso à ruralidade; a apologia da vida simples e do nacionalismo; o anti-intelectualismo; a exaltação do folclorismo e do misticismo das antigas tradições populares – no fundo, tudo sintomas de um nacionalismo crescente, a que não terão sido alheios os efeitos do Ultimatum e a consciência do atraso do país.


O neogarretismo diferenciava-se do simbolismo e do decadentismo pela busca da simplicidade e do natural, e também por uma atitude que podemos considerar optimista: apesar de, por exemplo, António Nobre ser um poeta melancólico e angustiado, há uma solução, há uma panaceia para tal estado, ao contrário do que acontece geralmente com o decadentismo.

Novas correntes neo-românticas surgiriam, depois, nesse início de século, influenciadas pelas novas correntes irracionalistas, sobretudo as originadas por Nietzsche e Bergson, e que se caracterizaram pelo nacionalismo, pelo vitalismo, por um certo sentimento religioso e histórico e por outras recuperações e metamorfoses dos preceitos do romantismo que havia vigorado na primeira metade do século XIX. Entre elas podemos apontar, em termos literários e filosóficos, o saudosismo, e, em termos literários, filosóficos e políticos, o Integralismo Lusitano.


Conclusão: Haveria muito mais a dizer sobre a cultura portuguesa na viragem do século. Ficaram de fora desta abordagem figuras ímpares pela sua individualidade e originalidade no panorama português como Fialho de Almeida, Raul Brandão ou Manuel Laranjeira (1877-1912). Ficaram de fora, igualmente, temas como o sebastianismo, a imprensa (em 1899, existiam 188 periódicos em Lisboa e quase 600 no resto do país), o teatro, as artes plásticas, etc. Porém, pensamos ter contribuído o suficiente para, pelo menos, contribuir para uma introdução ao panorama cultural português no início do século XX.

-A alternância constante entre optimismo e pessimismo ainda hoje existe em Portugal. O mesmo acontece com um certo sentimento sebastianista, messiânico.
-Até que ponto o positivismo republicano não seria uma doutrina totalitarista.
-A forma como certas ideias das correntes de pensamento finisseculares parecem encaixar em alguns aspectos da doutrina estado-novista: a necessidade de regeneração da raça, a apologia da ruralidade, da tradição, do nacionalismo, etc. – Muitas das personalidades ligadas ao Estado Novo crescerão neste ambiente cultural

Ricardo Revez



[1] Lei dos 3 estados: teológico, metafísico e científico.
[2] Embora seja importante referirmos que esta manteve sempre uma atitude crítica face a este sistema filosófico, ex: Émile Littré (1801-1881), um discípulo de Comte, que recusou algumas ideias do mestre, foi sempre muito mais bem aceite em Portugal, do que Comte; o utilitarismo de John Stuart Mill (1806-1873) e o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882) (luta pela sobrevivência em que apenas os mais aptos sobrevivem; a maior aptidão para essa luta é transmitida pela hereditariedade) e de Herbert Spencer (1820-1903) (o seu evolucionismo, no fundo, é uma aplicação da teoria de Darwin a todos os campos do conhecimento: no entanto, apresenta já algumas ideias irracionalistas: a evolução para Spencer não se dá de uma forma mecanicista mas sim, através da actividade psíquica na sua forma impulsiva (voluntarismo) = Schopenhauer, a vontade como essência da realidade), também eram muitas vezes mesclados ou melhor aceites do que o positivismo original comtiano.
[3] “Define a essência do mundo como vontade, isto é, um querer inconsciente e intuitivo, que age em todas as forças da Natureza e no Homem” (António Reis). A Vontade é a única realidade e o mundo é algo de ilusório, uma representação, uma simples expressão desta. Esta Vontade expressa-se no “querer viver”, um impulso cego e irracional, sem finalidade, nunca satisfeito, e que causa necessariamente uma constante dor e inquietação no Homem, que vê a sua vida dominada por uma força sem sentido e toda-poderosa em relação ao seu querer individual. Quando o homem não se encontra nesse desassossego terrível cai no tédio, que, segundo Schopenhauer, é uma situação ainda pior do que a primeira. A única forma de escapar a este ciclo interminável de dor e tédio é conseguir suprimir o desejo de viver, de uma forma parcial e temporária através da arte ou da justiça, e, de uma forma definitiva, através da ascese, a Vontade de Nada, concepção inspirada no Nirvana budista. Nem mesmo o suicídio é uma solução visto que ele próprio representa um apego à vida, embora não àquele tipo ou situação particular de vida.
[4] O pragmatismo de William James (1842-1910); o espiritualismo idealista de Wilhelm Dilthey (1833-1911); o intuicionismo de Henri Bergson (1859-1941) – valorização da intuição, do instinto espiritualizado; a psicanálise e a teoria do inconsciente de Sigmund Freud (1856-1939) – aliás A Interpretação dos Sonhos surgiu exactamente em 1900.
[5] Mesmo Sampaio Bruno (1857-1915), que é, curiosamente, crítico do positivismo, sendo republicano, não é propriamente um irracionalista, mas sim racionalista metafísico/idealista, e não positivista); quanto a Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), que em 1905 publicou Palavras Cínicas, um dos maiores êxitos editoriais das primeiras décadas do século XX (até aos anos 30 vendeu 50 mil exemplares), não era propriamente um filósofo, mas um jovem jornalista de 19 anos, discípulo de Fialho de Almeida e que encontrou nas ideias amorais de Schopenhauer uma fórmula de sucesso para a sua estreia literária; Jaime de Magalhães Lima (1859-1936), apesar de antipositivista, foi mais um divulgador da obra filosófica do russo Tolstoi (1828-1910), do que propriamente um filósofo com doutrina própria.

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